Frota digital e a contratação de autônomos: é possível contratar com segurança jurídica?

As empresas que não possuem frota própria sempre enfrentaram o grande desafio de buscar autônomos e agregados para a prestação de serviços que pudessem auxiliar, ou mesmo possibilitar, sua sobrevivência no mercado. 

Cresceu, nos últimos anos, a opção pelo uso de plataformas digitais, por parte destas empresas, que objetivam, assim como outras, a redução de custos, aliada a segurança e eficiência. 

Contudo, embora a contratação de autônomos, via plataformas digitais para fretes e transportes de cargas, seja uma prática cada vez mais comum no cenário atual, do ponto de vista da segurança jurídica, essa modalidade de contratação ainda levanta muitas questões e desafios, que precisam ser observados com extrema cautela, para garantir o cumprimento das normas trabalhistas e evitar, ou ao menos minimizar, problemas jurídicos, tanto para os autônomos quanto para as empresas intermediadoras e para as contratantes. 

Contratação regida pela lei civil  necessidade de elaboração de cláusulas claras 

O contrato a ser firmado entre a plataforma digital e os autônomos tem natureza de um contrato de prestação de serviços, regulamentado principalmente pelo Código Civil que, no artigo 593, exclui a possibilidade de aplicação das normas trabalhistas à relação instaurada, embora seja uma relação de trabalho. 

O ajuste deve ser claro e detalhado, com especificação da natureza do serviço prestado, os valores a serem pagos, a responsabilidade das partes envolvidas, entre outros aspectos relevantes. 

A clareza nas cláusulas é fundamental para evitar conflitos futuros e garantir a segurança jurídica de todas as partes envolvidas, e para evitar a caracterização de fraude contra as normas legais, sobretudo as de natureza trabalhista. 

Há situações onde as empresas buscam, na verdade, isentar-se de encargos tributários, previdenciários e benefícios que o trabalhador celetista possui. 

O trabalhador autônomo precisa manter, na prática, a autonomia prevista no contrato, sendo imperioso registrarmos que prevalece, no direito do trabalho brasileiro, o princípio da primazia (predomínio) da realidade sobre a forma, ou seja, a realidade prática é que ditará a real natureza do contrato firmado, ainda que o papel preveja uma situação ou forma distinta.
 

A Reforma Trabalhista e a “regulação” do trabalho autônomo 

A CLT sofreu uma das suas mais significativas modificações, no ano de 2017, quando foi publicada a chamada “Lei da Reforma Trabalhista” (Lei Federal 13.467/2017). 

Esta lei incluiu, entre outros, o art. 442-B, que estipula que “a contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no artigo 3º, desta Consolidação”. 

Entretanto, não há, na norma, a indicação das “formalidades legais” a que se refere citado artigo, atraindo a recomendação de que, além do cuidado com a forma e clareza do contrato de prestação de serviços a ser firmado com o autônomo, é essencial que a realidade fática também cuide de conceder, manter e priorizar a autonomia do trabalhador contratado, uma vez que, se constatada a presença dos elementos que caracterizam o vínculo empregatício, este, decerto, será declarado. 

Exemplificamos: o contratado, autônomo, não deve assumir os riscos do negócio e não deve estar subordinado ao contratante, durante o período de vigência do contrato. 

Nos termos do art. 6º, da CLT, não há distinção entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado à distância, se estiverem caracterizados os pressupostos da relação de emprego.  

Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalhado alheio. É o que também prevê a lei trabalhista (parágrafo único do art. 6º, com redação dada pela Lei 12.551/11) 

É essencial, assim, que também na adoção dessas novas formas de organização e gestão da força de trabalho humano, haja, na prática, efetiva atenção à relação civil, inerente aos autônomos, sob pena de caracterização de uma relação empregatícia, uma vez que o Judiciário Trabalhista atenta, com prioridade, às circunstâncias fáticas. 

Aliado ao exposto, é importante que as empresas, contratantes e intermediadoras, zelem pelo pagamento de valores justos, atentem à existência de intervalo entre jornadas e a condições de trabalho seguras, de modo a minimizar eventuais impactos decorrentes de um impasse judicial.
 

Responsabilidade solidária 

Observamos, acima, que houve mudança na lei trabalhista, para acrescentar a possibilidade expressa de aceitação da contratação de autônomos. 

Este acréscimo, inserido no texto do art. 442-B, da CLT, ainda é objeto de inúmeros debates, com crescente acionamento do Judiciário para solução de litígios a este respeito. 

Quando acionada, a Justiça avalia o caso concreto, com peso superior ao texto e formalidades inerentes. 

Assim, mesmo que exista um contrato de prestação de serviços, como autônomo, se, na prática, a relação contrariar a lei trabalhista, justificará a condenação solidária da intermediadora e da contratante, sobretudo se existirem indícios de fraude ou desrespeito aos direitos dos autônomos. 

É muito importante que a plataforma atue de forma ética e transparente, garantindo que os autônomos sejam devidamente remunerados e que as relações sejam pautadas na legalidade, além de adotar mecanismos eficientes de fiscalização e acompanhamento das atividades, que não implique em subordinação jurídica, além de cumprir os prazos estabelecidos e o cumprimento das obrigações contratuais firmadas. 

Em resumo, a contratação de autônomos via plataformas digitais para fretes e transportes de cargas é uma prática inovadora e vantajosa, mas requer cuidados especiais para garantir a segurança jurídica de todas as partes envolvidas.  

O Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região já se pronunciou, em ação trabalhista ajuizada por um caminhoneiro, e manteve decisão originária, que negava o vínculo de emprego entre ele e a empresa de logística que contratou seus serviços de frete, porque inexistentes os requisitos previstos no art. 3º, da CLT, para a caracterização do vínculo de emprego (processo n. 0011363-48.2015.5.03.0131). 

No caso em tela, ficou evidenciada, além da existência do contrato escrito e do cumprimento das cláusulas nele previstas, a ausência de subordinação jurídica, uma vez que o trabalhador era quem estabelecia e organizava a sua jornada, e recebia pelas entregas efetivamente realizadas, além de arcar com as despesas de manutenção e combustível, necessárias à prestação dos serviços. 

Não foi comprovada a pessoalidade, porque o motorista poderia ser substituído, o que só não acontecia em razão do aumento do valor do seguro do veículo que ele utilizava e com o qual o próprio motorista teria que arcar. 

Assim, o Tribunal valeu-se dos diversos elementos de prova, não presumindo, imediatamente, que a simples contratação de autônomo implicaria em fraude e consequente reconhecimento do vínculo. 

Citado caso não era relacionado à contratação feita por meio de plataforma digital, mas exemplifica, com clareza, a utilização, pelos julgadores, dos princípios trabalhistas que prezam pela realidade fática, acima da formalidade. 

Em análise a situação específica, relacionada à contratação de trabalhadores por meio de plataformas digitais, este mesmo tribunal regional (TRT 3) já se pronunciou no sentido de que “a subordinação é a pedra de toque para diferenciar a relação empregatícia de outras formas de prestação de serviços” e que “havendo interferência do tomador dos serviços no processo laboral, ou seja, na forma da concretização do trabalho prestado, verifica-se presente o elemento subordinação, restando configurado o vínculo de emprego”. 

No caso analisado, a prova oral foi essencial para firmar o convencimento dos julgadores, que concluíram que a autonomia do autor era apenas aparente, porque sujeito a regras dispostas no termo e condições de uso da plataforma, com vedação ao aceite de ofertas de serviços à margem da plataforma disponibilizada e com valores dos fretes estipulados pela empresa contratante, que previa, ainda, serviços de cobrança de valores e agenciamento, recebimento por conta e ordem de terceiros. 

Houve a descaracterização do contrato de prestação de serviços de autônomo e reconhecimento do vínculo de emprego. (processo n. 0010675-57.2021.5.03.0105)
 

Segurança Jurídica e Proteção dos Direitos Trabalhistas 

Um estudo realizado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) revelou que 1,5 milhões de brasileiros trabalharam, em 2021, para plataformas digitais e, destas, pelo menos a metade atua em aplicativos de transportes de passageiros.  

Ainda não se tem número exato do número de trabalhadores vinculados a plataformas destinadas ao frete digital. 

Fato é que embora seja um tema diretamente relacionado ao presente e ao futuro do trabalho, esta modalidade também envolve inúmeras discussões jurídicas, por versar acerca da construção de uma regulação de trabalho sem previsão de muitos direitos, e pode acabar substituindo o direito do trabalho considerado “protetivo”. 

Alguns trabalhadores, e também contratantes, aderem à proposta de prestação de serviços da frota digital em razão da facilidade de evasão fiscal, atraindo a atenção da justiça do trabalho, na totalidade, porque envolve, relativamente aos primeiros, uma remuneração considerada baixa, embora dotada de riscos, algumas vezes, elevados. 

Contribuiu para  a intensificação dos debates o advento da lei da Reforma Trabalhista, que trouxe novas modalidades de contrato de trabalho, como a intermitente, com contratação feita sob demanda, e regulamentou o teletrabalho, que possibilita afastar a contagem do trabalho por tempo, para ser medido apenas por tarefa, quando realizado, portanto, pela via remota. 

E houve, enfim, a supervalorização do contrato, sobretudo quando endossado por norma coletiva, sobrepondo-se à lei, com amplitude da negociação individual, muitas vezes prejudicial aos trabalhadores que, nem sempre, sentem-se confortáveis ou amparados suficientemente para ir à Justiça, em busca de seus direitos, especialmente diante do risco de não concessão dos benefícios da justiça gratuita ou mesmo com sua concessão, diante do risco de condenação ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais aos procuradores da parte contrária. 

Estes fatores, entre outros, de igual importância, contribuem para um cenário de incerteza jurídica e ampliação da contratação informal, inclusive aquela feita por meio de plataformas digitais. 

A contratação de autônomos por plataformas digitais para fretes e transportes de cargas é uma prática crescente no mercado atual, buscando redução de custos e maior eficiência. No entanto, essa modalidade de contratação levanta questões complexas em relação à segurança jurídica para todas as partes envolvidas. 

O contrato firmado entre a plataforma digital e os autônomos é regido pelo Código Civil e deve conter cláusulas claras e detalhadas para evitar conflitos futuros. A falta de clareza nas cláusulas pode resultar em problemas jurídicos, incluindo a caracterização de fraude trabalhista. 

A Lei da Reforma Trabalhista incluiu o art. 442-B na CLT, afirmando que a contratação de autônomos afasta a qualidade de empregado. No entanto, a falta de especificação das “formalidades legais” exige que a relação prática preserve a autonomia do trabalhador contratado. A subordinação é um fator determinante para diferenciar a relação de emprego de outras formas de prestação de serviços, e o princípio da primazia da realidade sobre a forma é aplicado pelo Judiciário. 

É fundamental que as empresas intermediadoras ajam com ética e transparência, garantindo remuneração justa e condições de trabalho adequadas para os autônomos. A responsabilidade solidária pode ser aplicada caso a relação de trabalho contrarie a lei trabalhista ou sejam constatados indícios de fraude. 

A contratação de autônomos via plataformas digitais é uma prática inovadora e vantajosa, mas requer atenção especial para garantir a segurança jurídica. A adoção de mecanismos de fiscalização e acompanhamento das atividades, sem implicar em subordinação jurídica, é essencial para evitar litígios e assegurar os direitos de todas as partes envolvidas. 

Contudo, o cenário atual ainda envolve incerteza jurídica e contratações informais, o que pode comprometer a proteção dos direitos dos trabalhadores. O debate em torno dessa prática é intenso, envolvendo questões fiscais e a regulação do trabalho, e requer soluções que garantam a justiça e a segurança para todas as partes envolvidas. 

Conclusão 

Embora a contratação de autônomos por meio de plataformas digitais seja uma prática em crescimento, ainda há abundante discussão jurídica e inúmeras incertezas em torno dessa modalidade de trabalho. 

A busca pelo equilíbrio entre a inovação e a proteção dos direitos trabalhistas ainda é uma constante, uma vez que a embora a contratação de autônomos, por meio de plataformas digitais, possa trazer benefícios, ela também requer uma abordagem e análise cuidadora, para cumprimento das normas trabalhistas, de modo a conciliar a proteção dos direitos dos trabalhadores e segurança jurídica aos envolvidos. 

Assim, reforçamos a necessidade de assistência contínua, a ser prestada por advogados trabalhistas especializados e antenados com as constantes modificações legislativas e oscilações do mercado, para as inovações serem adotadas com atenção aos princípios aplicáveis a cada caso, além de observância a critérios legais e entendimentos jurisprudenciais avançados, para haver efetivo ganho! 

Paulo Teodoro – Advogados Associados

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