Se buscarmos a etimologia da palavra “planejar” torna-se mais explícita a ideia do instituto jurídico da planificação patrimonial e sucessória. O verbo deriva do latim planus, que significa “superfície plana”. Na França, desde meados do século XVI, planejar se referia aos esboços dos projetos de cidades e edifícios1. Portanto, pode-se dizer que planejamento é um ato, uma ação que visa organizar, preparar, planear algo que terá efeitos posteriores.
Não seria equívoco dizer que o planejamento patrimonial caminha lado a lado com o planejamento sucessório. Na verdade, a planificação hereditária se apresenta como uma vertente da primeira, porém, com viés mais restrito, uma vez que o planejamento patrimonial pode se integrar a outras áreas como a fiscal, tributária, etc.2
Com efeito, trata-se de instrumentos que prestigiam a autonomia de vontade e ostentam caráter preventivo, podendo garantir eficácia na partilha de bens, principalmente se o intuito for evitar conflitos familiares em cenário pós-morte e preservar o núcleo parental. Atualmente podemos citar algumas opções ao planejamento como holdings, contratação de previdência privada, fundos de investimento, doações em vida e elaboração de testamento.
Trazendo o planejamento patrimonial e sucessório para a perspectiva do Direito Empresarial e Societário, é possível afirmar que o instituto planificador pode ser eficiente também no que tange à perpetuação das empresas familiares, que chegam a representar 65% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro3. Ou seja, a planificação se apresenta como um importante instrumento da economia nacional.
Contudo, a liberdade de planejar não é absoluta, uma vez que a legislação prevê limitações pontuais aos desígnios particulares, sendo necessária sua observância para que o instrumento seja válido e pleno. Verificada tais balizas, o planejamento terá o efeito almejado.
A primeira limitação que o legislador impôs é a proteção da quota dos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge/companheiro ou companheira — art. 1.845 do Código Civil) titulada “legítima” que consiste a cinquenta por cento do patrimônio de quem pretende dele dispor (art. 1.846 do Código Civil).
Outra linde imposta pela Legislação Pátria é a vedação prevista no art. 426 do Código Civil, que proíbe expressamente a pactuação da herança de pessoa viva — pacta corvina (“pacto do corvo”). Na verificação de qualquer disposição do tipo, a autoridade judiciária deve declarar sua nulidade, nos termos do art. 166, VII, do mesmo códex acima.
Este confim legal é uma deixa de origem romana e a terminologia faz alusão aos hábitos de um corvo, que aguarda pacientemente a morte para se aproveitar dos restos mortais de sua vítima. A proibição buscava coibir atos de imoralidade, pois notavelmente poderia gerar o desejo da morte de quem seja proprietário daquele acervo patrimonial objeto do contrato firmado4.
Porém, resta-nos um questionamento sobre a relativização das disposições abdicativas, pois a origem da vedação é impedir o interesse e aquisição ilícita de patrimônio. Decerto não teria sentido embargar desejo desta categoria. Porém, não é o entendimento de alguns Tribunais, a exemplo do Mineiro; vejamos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – INVENTÁRIO – REGIME DE BENS – PACTO ANTENUPCIAL DE SEPRAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS – SEPARAÇÃO DO DIREITO SUCESSÓRIO – CÔNJUGE-VAROA – HERDEIRA NECESSÁRIA – ART. 1.829, INCISO I, DO CC/2002 – POSSIBILIDADE – DECISÃO REFORMADA – RECURSO PROVIDO.
1-Conforme entendimento jurisprudencial mais recente do Superior Tribunal de Justiça, o?regime?de?bens?do casamento estabelece regras e limites aos cônjuges enquanto vivos, não se podendo configurar acordos sobre a disposição da herança de ambos quando vierem a falecer, sob pena de se estar configurando o chamado ‘pacta corvina’, vedado no ordenamento jurídico. 2- Havendo?pacto?antenupcial?de?separação?convencional?de?bens, e, sendo este válido, há que se reconhecer a condição de herdeira necessária da?cônjuge-varoa. 3-Recurso provido.
(TJMG –Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.17.009485-8/001, Rel. Des. Hilda Teixeira da Costa, 2ª Câmara Cível, jul. Em 05/09/2017)
Talvez as balizas impostas pela Lei encontrem repouso em duas justificativas: a primeira é o fato de termos um Código com viés patriarcal, onde a função social da herança é regra. Ademais, cabe ressaltar que a família, base da sociedade, possui proteção especial do Estado, nos termos do art. 226, da Constituição Federal da República de 1988.
O outro porquê tem a ver com a utilização deturpada da planificação patrimonial, que pode ser utilizada de má-fé por devedores contumazes, por exemplo, que objetivam a blindagem patrimonial. Certamente isso acaba por enfraquecer o instituto.
Importante também é considerar como as limitações culturais desempenham força sobre a sociedade e contribuem com os entraves legais. Embora as pessoas saibam que a morte é um destino comum a todos, a crença de que falar dela atrai é mais potente do que aquela certeza. A vista disso, o assunto se tornou um verdadeiro tabu.
Outrossim, os custos e o fato da sucessão legítima já contemplar pessoas que seriam agraciadas em eventual testamento, por exemplo, contribuem com a pouca usabilidade da planificação e produzem sentimento de conformidade nas pessoas com as disposições legais5. Contudo, merece alusão o fato de ter se registrado um crescente no número de planejamento sucessório no ano de 20216. O impulso se explica pela percepção de proximidade da morte? Afinal, na época do registro, o país enfrentava o auge da pandemia do Covid-19.
De modo geral, conclui-se que as limitações previstas em Lei são balizas ainda necessárias e, embora mitiguem a autonomia de vontade (em parte), não tem o condão de ofuscar as facetas da planificação que possuem incontestáveis vantagens sobrepostas sob as restrições mencionadas durante a explanação acima. Ademais, existem barreiras sociais a serem quebradas de modo a permitir que o instituto penetre no costume coletivo, mas essa é uma tarefa que deve ser exercitada pacientemente, uma vez que a quebra de hábitos comunitários requer tempo, equilíbrio, repetição e paciência.
Paulo Teodoro – Advogados Associados