O princípio da autonomia de vontade (mitigado) no planejamento patrimonial e sucessório

A autonomia de vontade é um imperativo, um poder conferido a todo ser humano que o permite estipular de forma livre os seus interesses. Esta aptidão se manifesta diversas vezes em nosso dia de forma automática sem que percebamos. A autonomia privada está presente quando vamos à padaria e compramos um pão para o café da manhã, está quando vamos até o posto de gasolina antes do trabalho para abastecer o carro, está na hora do almoço quando definimos o que estamos com vontade de comer, enfim, ela faz parte do nosso cotidiano.  

No Direito Civil, a autonomia privada é um dos princípios basilares que norteiam a norma jurídica. Maria Helena Diniz (2012) afirma categoricamente que a autonomia de vontade é o reconhecimento de que a capacidade jurídica da pessoa humana lhe confere o poder de praticar ou abster-se de certos atos, conforme sua vontade1. Arnoldo Wald (1995)2 já nos ensinava que a autonomia da vontade é apresentada de duas formas: na liberdade de contratar e na liberdade contratual. O primeiro aspecto é a faculdade de realizar ou não um ato, ao passo que o segundo é a possibilidade de definir o conteúdo daquilo que se vai pactuar.  

Por ser o sustento das relações civis, a autonomia de vontade se apresenta também como fator indispensável quando se trata da planejamento patrimonial e sucessório, afinal, “planejar é a evidência de um querer especial externado por uma pessoa” (ARAÚJO, 2022)3. Ou seja, o primeiro passo para o planejamento parte da autonomia privada do indivíduo, de seu livre-arbítrio. Cesar Fiuza (2009)4 pontua que o fundamento imediato no testamento, por exemplo, é a autonomia do testador, depois é que virá os demais aspectos relacionados à matéria do instrumento.  

A organização em vida do patrimônio e da sucessão se apresenta como um inteligente mecanismo de preservação do núcleo familiar, cumprindo com a proposta do “novo” Direito de Família estudado sob a perspectiva civil-constitucional. Isso porque tem o condão não só de perpetuar os ativos familiares, mas também evitar litígios hereditários. Na vertente do Direito Empresarial que o diga. Rolf Madaleno (2013)5 afirma que a estruturação da sucessão de uma empresa é atitude sapiente de governança familiar. 

O princípio da autonomia de vontade no Direito Civil é consagrado em diversas passagens do Código. A título de exemplo temos a redação do caput do art. 421, que prevê: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”. Seu parágrafo único ainda complementa: “Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”. Contudo, da mesma forma que o legislador civil homenageou a autonomia privada, ele também a mitigou. Portanto, pode-se afirmar que o princípio não é absoluto, pois depende da observância de seus limites.  

Na planificação patrimonial e sucessória isso se mostra ainda mais evidente. A primeira barreira que o planejador encontrará no exercício de sua autonomia privada será a observância e respeito à legítima dos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge/companheiro ou companheira – art. 1.845 do Código Civil), a qual consiste em 50% (cinquenta por cento) do patrimônio do indivíduo, nos termos do art. 1.846, do Código Civil. Ou seja, pelo menos metade do acervo patrimonial já está comprometido caso o indivíduo tenha herdeiros desta classe.  

Há quem defenda uma “modernização” do Código para que seja permitida e consagrada a autonomia privada de forma ilimitada. Contudo, não tão hodierna é a proposta. Isso porque se fizermos um recorte histórico veremos que o tema foi proposto na tramitação do projeto do Código Civil de 1916, mas rejeitada na Câmara dos Deputados após aprovação no Senado. Clóvis Beviláqua (1983) considerou a ideia uma “desastrosa inovação”6. O motivo para tal consideração se repousa nos ideais da função social da herança, onde a promoção da dignidade humana é fator que se sobrepõe.  

Outro entrave relevante nos limites da autonomia privada quando o assunto é planejamento patrimonial e sucessório versa sobre a vedação contida no art. 426, do Código Civil, que trata da proibição do intitulado pacta corvina (“pacto do corvo”). A norma prevê: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”. A ideia é nobre e isso é reconhecível, afinal, busca afastar atos imorais praticados pelos herdeiros do proprietário da eventual deixa patrimonial. A jurisprudência atual entende que a hipótese é causa de nulidade absoluta nas transações do tipo; veja-se: 

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM PROCESSO DE INVENTÁRIO. TRANSAÇÃO SOBRE HERANÇA FUTURA. NULIDADE. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. 1. Não configura ofensa ao art. 535, I e II, do Código de Processo Civil de 1973 o fato de o Tribunal de origem, embora sem examinar individualmente cada um dos argumentos suscitados, adotar fundamentação contrária à pretensão da parte recorrente, suficiente para decidir integralmente a controvérsia. 2. Acórdão recorrido que manteve a nulidade de cessão de direitos hereditários em que os cessionários dispuseram de direitos a serem futuramente herdados, expondo motivadamente as razões pelas quais entendeu que o negócio jurídico em questão não dizia respeito a adiantamento de legítima, e sim de vedada transação envolvendo herança de pessoa viva. 3. A reforma do julgado demandaria, necessariamente, o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, providência incompatível com a via estreita do recurso especial, nos termos da Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça. 4. Embora se admita a cessão de direitos hereditários, esta pressupõe a condição de herdeiro para que possa ser efetivada. A disposição de herança, seja sob a forma de cessão dos direitos hereditários ou de renúncia, pressupõe a abertura da sucessão, sendo vedada a transação sobre herança de pessoa viva. 5. Agravo interno não provido. 

(STJ, 4ª T. Ag. Int. no REsp nº 1.341.825/SC. Rel. Min. Raul Araújo, j. 15.12.2016) 

Contudo, levanta-se um questionamento sobre a hipótese das disposições abdicativas, onde não há ganho ou vantagem monetária. Para falar sobre o tema, Diogo Magno de Araújo (2022) menciona a alteração dada pela Lei nº 48/2018 no Código Civil Português, que incluiu no art. 1.700, item 1, a possibilidade de constar disposições abdicativas recíprocas nos pactos antenupciais. A questão fora levantada com razão, afinal, a norma jurídica portuguesa deriva-se da mesma sistemática aplicada à codificação nacional, qual seja: o civil law. Certamente que a inovação verificada no Código Português merece atenção pela sua coerência e sensatez. 

Certamente que os limites da autonomia privada inseridos no planejamento patrimonial e sucessório são legados de um Código formado em meio aos ideais patriarcais. Não obstante, o legislador cumpriu com o propósito, que era de preservar a função social da herança. Porém, com efeito, tais barreiras mitigadoras dos desígnios individuais podem enfraquecer o instituto da planificação, afastando seus inúmeros benefícios que se inserem ao Direito das Famílias e das Sucessões.  

Paulo Teodoro – Advogados Associados

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